segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Crime

    Numa rua ampla, em hora solitária, arrasta-se, sob a luz nublada dos candeeiros redondos, um homem mais velho do que jovem, pouco mais alto do que baixo, mas contraído como um fósforo queimado. Traz o corpo inteiro vestido em luto, a pele coberta com uma cor poeirenta, o rosto com barba de semanas - também negra - e um sorriso que não se vê, por estar perdido. Os olhos, que a sombra do chapéu ruço do tempo e do uso tão bem esconde, confirmam, com suspeição, que ninguém mais está, além do seu estar. 

Faz-se acompanhar de uma mala com rodas, muito velha, muito desbotada. Estaciona-a junto a um carro imponente, topo de gama da última geração, de arestas caras tão polidas e tão brilhantes que iluminariam toda uma rua sem luz. Mais uma vez olha em seu redor, como olham os que roubam, os que matam… Escuta um ruído rouco e grave que se aproxima vagarosamente, um ruído que transporta atenção e desconfiança num motor cansado de não ter pressa. Ao lado pára esse carro fatigado onde dois homens fardados, também parados, observam os seus ombros magros. 

Indiferente, com a tranquilidade de quem não receia, aproxima-se do caixote do lixo que estava junto ao carro imponente, topo de gama da última geração. Abriu a tampa, que tanto lhe pesou naquelas mãos ásperas de vergonha, mas firmes de necessidade, e lá dentro procurou restos de felicidade. 

Então o carro onde estavam os dois homens fardados arrancou, porque o único crime que ali viam era o de um homem que não matava a fome, de um casaco que não violava o frio, de um carro de mão que não lograva multas e de uma pobreza que roubava vida.

4 comentários:

  1. Estou a tornar-me fã da tua escrita!!! Muito bom mesmo!!!!

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  2. Excelente!Acho que esta palavra diz tudo. Continua.

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  3. Muito bom, Bandovas! Gostei mesmo ;)
    Apenas uma observação, por vezes a densidade excessiva transforma os textos numa leitura "cansativa". Talvez até seja essa a intenção, mas por vezes as ideias passam melhor de forma mais simples e igualmente bem escrita.

    Fico à espera de mais!! Continua!!

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