segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O que é Ser Médico de Família numa Unidade de Saúde?

Batem três vezes à porta do gabinete, soando a pancadas de Molière atrasadas para o início da cena. Entram e saem num desfile de personagens onde cada uma se assume como principal, tal procissão de pecadores à procura de um santo de bata branca, anjo sem aréola, que lhes encomende a calma ou o perdão, heterónimos diferentes de um mesmo autor - a preocupação.
Em cada didascália antevê-se o tom das palavras e a educação de quem as figura – respeitando, com cautela, as surpresas que tornam o espectáculo mais curioso. Com a devida licença, ou sem ela – porque a porta está ali para se abrir e a cadeira para se sentar -, representa-se a ansiedade da mudança para algo errado, uma sensação de desconhecimento do normal que preocupa tanto por existir como por estar ausente e que apela à ciência das máquinas que vêem o corpo por dentro, quando os olhos do médico, mesmo em jejum, não imaginam que males ocupam o físico. Pudesse aparecer Blimunda para sossegar a angústia daqueles que, ao princípio, temem ver o sangue sair e os aparelhos a entrar, mas que, no fim, ainda temendo, acabam resignados e convencidos de que o esforço será pago em anos com saúde. Representam ainda, segundo apartes dissimulados em texto principal, personagens ousadas à procura de uma misericórdia qualquer, um motivo, caído dos céus, para o repouso, já que o corpo, com o calor, fica mole e alma não tem vacina para o ócio – vacina esta que poderia ser negociada com a personagem seguinte, por agora secundária, preocupada em relembrar os médicos dos novos produtos, fosse a própria uma daquelas ampolas que estimulam a memória, como não falha o que dizem os estudos e relatam outros médicos (caso para escrever “sic”). Lê-se ainda a esperança de não tardar mais a Primavera, que a luz já mexe e brilha com intensidade, enquanto outros, já iluminados, cuidam da felicidade de se verem perpetuados no tempo, por um novo sorriso na Terra.

Assim, quem sobe ao palco, quer para sentir com tranquilidade o último aplauso, quer para sentir, na novidade, o nervosismo do princípio de uma carreira, procura no Médico de Família os melhores adereços, para que o cenário seja belo e todo o espectáculo um sucesso. O Médico de Família, historiador à procura dos vestígios do passado, juiz e professor do presente, polícia de um futuro que se quer seguro, guarda, em cofre blindado, a confiança de que as preciosas vidas que acompanha seguirão imaculadas. Um aplauso para ele!

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Passou...

Passa por mim o tempo
Que passa num relógio sem ponteiro,
Que passa num vale sem crepúsculo,
Que passa numa sonata sem compasso.

Passa por mim o tempo
Que passa e eu não passo,
Que passa sem tardar e me tarda,
Que passa quieto e em mim perturbado.

Passa por mim o tempo,
Que já passou...

Caligrama do Silêncio

(                                                !
                                                 !
                                                 !
                                                 !

                                        .
                                        .
                                         ?
                                         ?


                                      ...
                                    ...
                                        !
                                     .
                                          ).

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Livre de Ser

Escrevo. Arraigado a esta cadeira. Amarrado a este papel. Agarrado a este lápis.

Lá longe, aqui ao lado, as aves voam, mas não nadam. Os peixes nadam, mas não voam.
A água sobe, mas em chuva desce. Tira a sede, mas afoga. Arrefece, mas mata.
O fogo aquece, mas queima. E da brasa nasce a cinza!
O ar respira, mas sufoca.
As folhas altas vivem, mas sempre caem.

Novamente em mim, aqui acorrentado.
Sem luz, não vejo. Sem vento, não ouço. Sem dor, não sinto.
Só não mais caio, porque mais não há para cair:
Sou grave de direito.

Mas para que me quero mais livre,
Se não há melhor vida que a de prisioneiro?

É este cárcere que me tira a fome,
É este cárcere que me tira a sede,
É este cárcere que me dá tecto,
É somente viver no cárcere da vida!

Porém, quem me tira sonhar?
Quem me tira       i           n          v   e     n                t          a      r                  ?
                                                                                   Quem me tira ser quem não sou,
E voltar a ser quem era?


Quem me tira pensar
                                                                                         Como
                                       Bem queira?


Leis, não me tentem apanhar…
Eu sou mais rápido…


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Crime

    Numa rua ampla, em hora solitária, arrasta-se, sob a luz nublada dos candeeiros redondos, um homem mais velho do que jovem, pouco mais alto do que baixo, mas contraído como um fósforo queimado. Traz o corpo inteiro vestido em luto, a pele coberta com uma cor poeirenta, o rosto com barba de semanas - também negra - e um sorriso que não se vê, por estar perdido. Os olhos, que a sombra do chapéu ruço do tempo e do uso tão bem esconde, confirmam, com suspeição, que ninguém mais está, além do seu estar. 

Faz-se acompanhar de uma mala com rodas, muito velha, muito desbotada. Estaciona-a junto a um carro imponente, topo de gama da última geração, de arestas caras tão polidas e tão brilhantes que iluminariam toda uma rua sem luz. Mais uma vez olha em seu redor, como olham os que roubam, os que matam… Escuta um ruído rouco e grave que se aproxima vagarosamente, um ruído que transporta atenção e desconfiança num motor cansado de não ter pressa. Ao lado pára esse carro fatigado onde dois homens fardados, também parados, observam os seus ombros magros. 

Indiferente, com a tranquilidade de quem não receia, aproxima-se do caixote do lixo que estava junto ao carro imponente, topo de gama da última geração. Abriu a tampa, que tanto lhe pesou naquelas mãos ásperas de vergonha, mas firmes de necessidade, e lá dentro procurou restos de felicidade. 

Então o carro onde estavam os dois homens fardados arrancou, porque o único crime que ali viam era o de um homem que não matava a fome, de um casaco que não violava o frio, de um carro de mão que não lograva multas e de uma pobreza que roubava vida.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Não sou, por ser tanto...


(Recomendação prévia: relembro que o nome deste espaço é "Galeria do Fingimento", logo não é saudável, nem correcto, inferir qualquer traço da minha real personalidade a partir dos textos publicados. Apenas gosto de inventar! Avisar também que os erros do texto foram propositadamente cometidos, mas isto entende como quiseres.) :)

Normalmente não sou redundante e geralmente não me costumo repetir. Por isso, admito que na maioria das vezes surge em cada frase uma nova ideia, isto é, regularmente não caio em tautologias. Ou seja, é certo que usualmente não recorro a pleonasmos nem a outros ciclos viciados de ideias, que em mim não são costumes. De um modo geral evito iniciar parágrafos com ideias anteriores porque perissologias não me dizem nada, nem nada me dizem.  

Os sinais de pontuação as regras da gramática e a otroragfia são imperativas para mim Respeito-as porque tão bem as oiço e tão bem me falam (interessante ouvi-las apenas quando as vejo) Respeito-as porque tão bem vos prendem oh palavras Palavras ou rabiscos que tão bem este branco sujam

Concluindo, que adoro começos, sou admiravelmente sério. Apaticamente folião. Se uma linha fosse, seria uma recta negra num quadro negro. Uma vela acesa num copo tapado. Uma estátua qualquer em verso cantado. Mas não sou, por ser tanto… 


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Hoje acordei e resolvi...

(O texto deve ser lido ao som do vídeo que o acompanha, uma vez que é inspirado na sua melodia).
             Hoje acordei e resolvi verificar o compasso: um fatídico ternário que, apesar de taciturno, não faria antever cadência tão perfeita.
            Tudo começou num súbito doce e simples, numa suavidade inelutável, mas irracional para quem desconhecesse o passado daquele fá vazio caminhando numa marcha lenta, mas movimentada. Encontrava-se visivelmente sobressaltado, com o coração arrítmico em semicolcheias desligadas, dando dó, num tom meio alterado.
            Após a pausa, seguiu em redor de lá em lamentos agudos, cuja repetição incoerente, num piano mais profundo, revelava alguma conformidade. Mas quando olhou o ponto dominante, com valor de reticências, cresceu assombrosamente na oitava, mergulhando num êxtase surreal, numa alegria boémia, apaixonada.
            De seguida, com a tranquilidade melancólica - mas radiante - de quem observa o divino, aproximou-se da sua tónica... Quando estava quase a alcançá-la, começou a soluçar em colcheias, num contratempo sorumbático: ela não estava lá...
            A alegria modulou-se numa desesperada agonia. Os gritos penetrantes, que saltavam em sétimas, diminuíam a força do sol que nunca se chegou a mostrar. O fôlego breve desapareceu, dando lugar a lamúrias contidas e rápidas - mas igualmente sofridas - que se repetiam, cada vez mais fracas, cada vez mais mortas...
            Olhava para trás e pensava em si, diminuído por circunstâncias atonais, movimentos contrários sem consonâncias paralelas e diabólicos trítonos.
            O fim é expectável: nenhuma tríade poderia mais suportar tamanha dor. Então, cambaleando num coxo retardado, é finalmente sentenciado por um doloroso trilo, que o faz perder-se, como tanto desejava, na sua tónica.